A era do “pleno emprego”, que vem sendo alardeado pelo governo Lula, ocorre justamente no momento em que encolhe o número total de pessoas ocupadas. De 2024 até outubro deste ano, a força de trabalho recuou 2%, de 110,7 milhões para 108,5 milhões de pessoas. Parte dessa queda se explica pela redução de 0,7% no contingente de ocupados, que passou de 103,3 milhões para 102,6 milhões. Já o total de desempregados declinou 20%, de 7,4 milhões para 5,9 milhões. Assim se chega aos 5,4% de taxa de desemprego que estampou as manchetes como a menor da história: há menos gente procurando trabalho em um mercado que, na prática, também encolheu. Esses números abrem uma série de questões. A mais óbvia: como o número de desempregados encolheu em 1,5 milhão ao longo do ano se, no mesmo período, o total de pessoas ocupadas diminuiu em 700.000?
A hipótese mais provável é que parte deles parou de buscar uma vaga. Mas por que alguém faria isso? Porque espera que seu sustento seja garantido por outros meios, como os programas assistenciais do governo. Para os estudiosos do tema, a responsabilidade por anabolizar a ajuda social, desestimulando a busca de emprego, é suprapartidária. Em 2003, quando foi criado, o Bolsa Família pagava em média 79 reais por família, o equivalente a 32% do salário mínimo da época. Em 2019, no primeiro ano do governo Bolsonaro, o valor era de 190 reais. Nessas condições, o programa servia como um complemento de renda e os contemplados não podiam abandonar o mercado de trabalho. A situação mudou no fim de 2020, quando Bolsonaro relançou o programa como Auxílio Brasil, com valor de 400 reais. Em agosto de 2022, o ex-capitão voltou à carga e aumentou o benefício para 600 reais. Além disso, em apenas dez meses, incorporou mais de 7 milhões de famílias ao programa. O retorno de Lula ao Planalto marcou o resgate do Bolsa Família. Embora o petista tenha cortado para 18,7 milhões o número de assistidos, elevou o valor médio para 670 reais.

ILUSÃO — Pochmann: em 1997, ele criticou os métodos do IBGE, que hoje preside
Estudos recentes ajudam a medir os efeitos negativos do crescimento da distribuição do Bolsa Família sobre o mercado de trabalho. Um deles, feito por Daniel Duque, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV), mostra que a proporção de brasileiros em idade ativa que seguem na força de trabalho encolheu após a ampliação dos benefícios sociais a partir de 2020. No último trimestre de 2019, a força de trabalho representava 63,6% do total de pessoas em idade para trabalhar. Com os aumentos dos benefícios de 2020 em diante, essa fatia recuou para 62,2%. “É claro que há um efeito do Bolsa Família”, diz Duque. O fenômeno é mais evidente entre homens jovens das regiões Norte e Nordeste, que, diante de um benefício equivalente a 35% da renda média do país, ficam mais propensos a abandonar a busca por emprego, já que, com baixa qualificação, tenderiam a receber salários próximos desse valor.

DESPRESTÍGIO — Carteira de trabalho: emprego formal em baixa
Pessoas mal qualificadas trocam os baixos salários que receberiam no mercado formal por bicos e pela ajuda do governo. Essa bola de neve já arrastou 40 milhões de brasileiros para trabalhos precários e informais, segundo o IBGE. “A situação é ampliada pelas plataformas digitais como o Uber e o iFood, que oferecem formas mais flexíveis de trabalho”, diz Maílson da Nóbrega, ex-ministro da Fazenda e colunista de VEJA. “Para superar o subemprego, o Brasil deve investir em educação e reduzir os encargos trabalhistas.”
A informalidade contribui ainda para outra distorção: o grande número de pessoas que trabalham menos horas do que precisam para pagar as contas. A chamada subocupação por insuficiência de horas atingiu 4,6 milhões de indivíduos em outubro, em linha com o registrado ao longo do ano. Isso revela a dificuldade do país de gerar postos de trabalho de boa qualidade. Não se deve esquecer também do desemprego velado, expresso pela chamada “força de trabalho potencial”, que abarca quem gostaria de procurar um emprego, mas não pode. É o caso das mães que querem trabalhar, mas não têm com quem deixar os filhos pequenos. Como, a rigor, tais pessoas não procuraram uma vaga no mês anterior à pesquisa do IBGE, são catalogadas como “fora do mercado de trabalho”. Trata-se de um grupo nada desprezível de 5,3 milhões de cidadãos, quase do mesmo tamanho dos declaradamente desempregados.

DISTORÇÃO — Cartão do Bolsa Família: o programa reduziu artificialmente o desemprego
As várias formas de subemprego e a força de trabalho potencial formam, junto com a taxa de desemprego, o que os especialistas chamam de taxa de subutilização. Concebido como um retrato mais preciso do mercado, esse indicador evidencia o fosso entre o propagandeado pleno emprego e a realidade: em outubro, 15,8 milhões de brasileiros enfrentavam dificuldades que iam do desemprego à informalidade, passando por subempregos e pela impossibilidade de procurar uma vaga, mesmo quando precisam trabalhar. Com isso, a taxa de subutilização chegou a preocupantes 13,9%. Quando se leva em conta que, segundo o estudo de Camargo, o Bolsa Família reduziu artificialmente a taxa de desemprego em 1,7 ponto percentual, o quadro muda de tamanho.

Procurado por VEJA para falar dos números oficiais de desemprego e da precariedade do mercado de trabalho no país, Marcio Pochmann, presidente do IBGE e fiel escudeiro de Lula, não retornou os pedidos de entrevista. Não é por falta de conhecimento que ele não toca no assunto. Em 1997, quando lecionava na Unicamp, publicou um artigo na Folha de S.Paulo em que criticava duramente os “restritos parâmetros metodológicos” adotados por “místicos da liturgia liberal” para fabricar baixas taxas de desemprego. Já naquela época, Pochmann observava que bastava uma hora de trabalho para que alguém fosse tido como empregado, e aqueles que não procurassem uma vaga por uma semana eram excluídos dos desempregados. “Os mercadores de ilusão talvez devessem refletir mais e melhor sobre as realidades do mercado de trabalho no Brasil”, escreveu na ocasião. Talvez esteja na hora de o Brasil trocar a euforia com o “pleno emprego” das estatísticas pela coragem de encarar, sem retoques, a precariedade real do trabalho que sustenta o país.
Publicado em VEJA de 5 de dezembro de 2025, edição nº 2973