IR até R$ 5.000 vira arma para o petista em 2026 | VEJA


A Câmara dos Deputados aprovou, na noite da quarta-feira 1, uma das mudanças mais significativas no imposto de renda em décadas: a isenção para quem ganha até 5.000 reais por mês. Em uma surpreendente e rara unanimidade, os 493 deputados presentes, do total de 513 que integram a Casa, votaram “sim”. Foi uma grande vitória do governo, e a aprovação renderá a Lula uma nova e poderosa arma para a campanha à reeleição em 2026. O projeto, que ainda passa pelo Senado, busca corrigir uma distorção antiga do sistema, ampliando a progressividade e prometendo alívio a milhões de brasileiros. A medida é bem-vinda, porque se aproxima da ideia de justiça em um país conhecido por cobrar mais de quem tem menos.

Para bancar a nova isenção, o governo aposta em elevar a taxação sobre a alta renda, combinando um novo imposto mínimo com a cobrança de tributo sobre lucros e dividendos. Há trinta anos esses rendimentos permanecem isentos no Brasil, que figura entre as poucas economias a adotar tal regra. A proposta de tributar dividendos já havia sido feita em 2021 por Paulo Guedes, então ministro da Economia de Jair Bolsonaro. Naquele momento, Guedes tentou rearranjar as cobranças do IR de pessoas e empresas para incluir os dividendos, mas a iniciativa acabou barrada no Senado sob o argumento de que a carga sobre o setor produtivo se tornaria mais pesada. Quatro anos depois, o projeto voltou em nova roupagem, com o discurso da justiça social e o objetivo de financiar a renúncia fiscal concedida à base da pirâmide.


Trata-se, de fato, de um avanço relevante, mas que está longe de resolver as distorções do regime. Apesar de representar um alívio, a medida não altera as fragilidades históricas do imposto de renda das pessoas físicas, que permanece excessivamente complexo, desigual e injusto. Um estudo recente do Sindifisco Nacional revela que, em 2023, os super-ricos, com rendimentos mensais acima de 320 salários mínimos, pagaram uma alíquota efetiva média de 4,34%, enquanto aqueles que recebem entre cinco e trinta salários mínimos foram tributados em 9,85%, mais do que o dobro. Essa assimetria foi construída ao longo de anos pela inércia de sucessivos governos na atualização da tabela de IR para compensar a inflação, que empurrou a classe média para patamares tributários mais elevados mesmo sem ganho real de padrão de vida. Estudos também mostram que, entre 2007 e 2023, aqueles com rendimentos muito elevados reduziram sua carga tributária em 37% nesse período, enquanto a classe média viu sua alíquota efetiva aumentar mais de 2.900% em algumas faixas de renda.

No caso do atual projeto, a tributação da alta renda não garantiu a convergência de todos os partidos. Impopular em diversos setores e contestada pela oposição até o último minuto, a elevação da carga no topo da pirâmide transformou-se no ponto mais sensível do projeto e acabou incluída como contrapartida pelo governo. “Ampliar a faixa de isenção é justo e não há ninguém que seja contra”, diz o deputado Gilson Marques (Novo-SC), um dos mais atuantes na tentativa de barrar o aumento de impostos sobre os mais ricos. “O problema sempre foi a compensação. O governo só muda a vítima: cobra de um no lugar do outro, em vez de cortar gastos.”



PERDAS — Agência da Receita: tabela do IR está defasada há anos

Atualmente, estão isentas as pessoas que ganham até dois salários mínimos — o equivalente a 3.036 reais em 2025. Isso representa 76% dos trabalhadores brasileiros, segundo o Ministério da Fazenda. Com a ampliação do limite, a parcela de isentos chegará a 86%. Se as sucessivas gestões tivessem corrigido regularmente a tabela pela inflação, todos os que recebem até 5.300 reais já estariam fora da cobrança, de acordo com cálculos da Anfip, associação de auditores da Receita Federal. A atualização automática da tabela foi uma das poucas mudanças incluídas pelo relator do projeto, o deputado e ex-presidente da Câmara Arthur Lira (PP-AL): a versão aprovada obriga o governo a enviar em até um ano uma lei que estabeleça esse mecanismo, eliminando a defasagem crônica que se arrasta desde 1996.



Além da nova faixa de isenção até 5.000 reais, o projeto prevê um desconto no IR para quem recebe entre 5.000 e 7.350 reais. Acima dessa faixa, permanece a alíquota máxima de 27,5%, que hoje já incide sobre salários superiores a 4.664 reais. Ou seja, para a classe média propriamente dita, nada muda — o fardo continua o mesmo. O conjunto de isenções e reduções deve aliviar a carga tributária de cerca de 15 milhões de pessoas, mas ao custo de 31,3 bilhões de reais em perda de arrecadação logo no primeiro ano. É nesse ponto que entram os super-ricos — e também as maiores controvérsias. Para cobrir o buraco, a proposta cria um imposto mínimo de 10% para os que ganham acima de 100.000 reais por mês, além de uma alíquota mínima gradual, de 0% a 10%, para renda de 50.000 a 100.000 reais. Quem ganha 70.000 reais por mês, por exemplo, terá de recolher um mínimo de 4%. Todos os que já pagam mais do que o novo imposto mínimo previsto para sua faixa não terão aumentos. Além disso, dividendos superiores a 50.000 reais mensais recebidos por uma mesma pessoa passarão a ser tributados em 10%.

A Receita estima que as novas regras vão acrescentar 34 bilhões de reais à arrecadação, valor suficiente para compensar as perdas provocadas pelas reduções concedidas a 15 milhões de contribuintes — ainda que o aumento da carga recaia sobre apenas 140.000 pessoas, o equivalente a 0,2% do total. Para especialistas, esse ajuste corrige uma distorção histórica. “Com a isenção dos dividendos, o Brasil acaba tendo a progressividade invertida”, afirma Sérgio Gobetti, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e um dos principais estudiosos do tema. “Quem ganha mais, paga menos.”



TENTATIVA — Em 2021, Guedes entrega a Lira reforma da renda: o texto passou na Câmara, mas morreu no Senado

Um retrato ainda mais eloquente aparece quando se observa o topo da pirâmide. Segundo dados compilados por Gobetti, o 0,1% mais rico da população recebe, em média, 5,3 milhões de reais por mês e, ainda assim, paga um imposto efetivo de apenas 5,7% sobre a renda total — a mesma carga de quem ganha 7.000 reais. A distorção é evidente, mas a resistência a tributar dividendos ou criar um imposto mínimo para altas rendas continua forte, sobretudo porque toca diretamente o setor produtivo: dividendos são, afinal, a parte do lucro repassada a sócios e acionistas. “Não deixa de ser um aumento de tributação do ponto de vista do empresário, e pode haver algum impacto sobre os investimentos e o crescimento, mesmo que pequeno”, afirma Alessandra Ribeiro, diretora de macroeconomia da Tendências Consultoria. O senador Angelo Coronel (PSD-BA) faz um alerta semelhante: “Temos que analisar com cuidado os possíveis impactos no custo do crédito e no encarecimento do empreendedorismo.”

Coronel foi relator da reforma do imposto de renda apresentada por Paulo Guedes e acabou responsável por arquivá-la no Senado, por considerá-la ampla e delicada em excesso para aquele momento político. Antes de morrer no Congresso, a proposta de Guedes chegou a ser aprovada na Câmara, então presidida pelo mesmo Arthur Lira que agora conduziu e ajudou a aprovar o projeto de Lula. A lembrança serve de aviso: a vitória expressiva na Câmara não garante sobrevida no Senado. “O escopo mais reduzido e mais alinhado com os anseios da população faz com que o projeto de 2025, de Lula, seja mais aprazível do que o de 2021, de Guedes”, diz Coronel. O governo conquistou uma vitória política relevante ao ver seu texto aprovado por unanimidade e praticamente intacto, mas a discussão certamente terá novos capítulos.


Publicado em VEJA de 3 de outubro de 2025, edição nº 2964