Tensao política no Brasil | VEJA


Há pouco mais de três décadas, em 1992, o Brasil assumiu um papel de protagonista no esforço globala enfrentar os grandes desafios ambientais que ameaçam a economia mundial e, em última instância, a própria sobrevivência do planeta. Naquele ano, o Rio de Janeiro sediou a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Rio-92. O encontro aconteceu poucos meses depois do fim da Guerra Fria — período marcado pela divisão do mundo em blocos capitalista e comunista e pela constante ameaça de uma hecatombe nuclear —, quando as nações decidiram se unir para refletir sobre o futuro. Dali nasceram marcos internacionais, como a Convenção das Nações Unidas sobre a Mudança Climática (UNFCCC, na sigla em inglês), que estabeleceu a realização anual da Conferência das Partes (COP), fórum dedicado a discutir e adotar medidas para conter o aquecimento global. Agora, pouco mais de um mês antes da trigésima edição do encontro, o Brasil volta ao centro das atenções: pela primeira vez, será o anfitrião de uma COP — e o fará diante de imensos desafios.


O PALCO – Parque da Cidade: obras no local que receberá a conferência estão quase prontas

O evento ocorrerá entre os dias 10 e 21 de novembro, em Belém, no Pará. Antes disso, nos dias 6 e 7 do mesmo mês, será realizada a Cúpula de Líderes, em que presidentes e primeiros-ministros se reunirão para ditar as prioridades das negociações. A conferência é fruto de um consenso que brotou em território brasileiro na década de 1990 e agora retorna às origens com uma missão de proporções amazônicas: pôr em prática os acordos já firmados, em meio a um cenário global turbulento, com destaque para o discurso negacionista do governo americano. Não bastassem os obstáculos diplomáticos e geopolíticos, questões internas contribuem para fazer da conferência do clima no Brasil um teste para os planos do presidente Lula — entre eles o de apresentar-se como líder de projeção internacional e reafirmar o protagonismo ambiental do país. Uma das provas mais emblemáticas é a escolha de Belém como sede da conferência. A decisão é simbólica, por colocar a capital do Pará como elo entre a maior floresta tropical do mundo e o Brasil urbano, e também ousada, diante de uma infraestrutura historicamente limitada, típica de uma cidade média de um país emergente. Trazer representantes do mundo inteiro para Belém é, em si, uma forma de ilustrar a dificuldade de conciliar, na prática, proteção ambiental e desenvolvimento.

O governo brasileiro pretende usar a COP30 como vitrine para destacar seus avanços em preservação ambiental e o potencial do país em oferecer soluções capazes de reduzir as emissões que provocam as mudanças climáticas. Há, de fato, resultados positivos a apresentar — embora persistam pontos de preocupação. Pelo lado otimista, o Brasil é referência mundial em biocombustíveis, em um momento em que o esforço dos países está justamente em reduzir a queima de carvão e derivados de petróleo, que representam cerca de 80% das emissões de gases do efeito estufa. Além disso, quase 90% da geração elétrica no país vem de fontes limpas e renováveis, como usinas hidrelétricas, eólicas e solares, diante de uma média global que se situa em torno de apenas 40%.

No quesito preservação do ambiente, o Brasil, guardião da maior biodiversidade do planeta, tem conseguido reduzir a derrubada de florestas, depois de vários anos de retrocessos. Segundo a rede MapBiomas, em 2024 o país registrou um recuo de 32% na área desmatada em relação ao ano anterior. Apesar desse número positivo, ainda falta muito para atingir a meta assumida pelo governo de zerar o desmatamento até 2030. Enquanto boa parte dos esforços se concentrou em diminuir a degradação da Amazônia, outros biomas ainda registram índices de destruição preocupantes. O Cerrado é o sistema que apresentou a maior perda de vegetação nativa nos últimos quarenta anos, cerca de 45% do total. O Pantanal, a maior área alagada contínua do mundo, já perdeu 19% da cobertura original, tendência que se acelerou nos últimos três anos devido às secas — um dos efeitos das mudanças climáticas. Na Caatinga, a desertificação foi o principal fator responsável pela destruição de metade da vegetação nativa. Já na Mata Atlân­ti­ca, o maior problema é a fragmentação da área, uma característica que aumentou a exposição de territórios à alta degradação ao longo do tempo, que pode ter chegado a 73% da cobertura original. Mas há uma boa notícia aqui: de 2008 a 2023, de acordo com a ONG SOS Mata Atlântica, o bioma registrou recuperação de 650 000 hectares. Trata-se de um exemplo raro de regeneração florestal, ainda que relativamente pequena ante tudo o que já foi perdido.



FLORESTA EM PÉ — Ilha do Combu, em Belém: a Floresta Amazônica estará à vista dos participantes da COP30

Apesar de avanços como esses, os ambientalistas demonstram apreensão com outras questões, como a decisão do governo brasileiro de não abdicar de abrir novas fronteiras de exploração de petróleo, a exemplo dos planos de perfuração na Margem Equatorial da Amazônia. Muitos veem nisso uma contradição do discurso do Planalto de promover a transição energética, ou seja, a substituição de combustíveis fósseis por outras fontes de energia. “Ao transformar o petróleo em seu principal produto de exportação, o Brasil contribui para o aumento das emissões de carbono em outros países”, afirma Tasso Azevedo, coordenador da MapBiomas. O governo argumenta que nenhum país que dispõe de reservas de petróleo abriu mão desses recursos e que, para fazê-lo, é preciso antes que os países, em conjunto, consigam reduzir sua dependência não apenas energética, mas também econômica, dos combustíveis fósseis. No Brasil, ressalve-se, os royalties do petróleo são essenciais para sustentar o orçamento de muitos estados e municípios.



FUTURO — Barbalho: aposta no legado que o evento deixará para o estado

A pressão para que os governos assumam compromissos mais audaciosos vem aumentando ano a ano, diante dos sinais nítidos da era de catástrofes climáticas. Ao mesmo tempo, a atual conjuntura geopolítica parece conspirar contra a formação de consensos nessa área. Na terça 23, na abertura da Assembleia Geral da ONU, o presidente Lula e o presidente americano Donald Trump fizeram discursos com mensagens diametralmente opostas, especialmente no que diz respeito ao meio ambiente. O brasileiro afirmou que “bombas e armas nucleares não vão nos proteger da crise climática” e que a COP30 “será o momento de os líderes mundiais provarem a seriedade de seu compromisso com o planeta”. Trump, por sua vez, classificou a crise climática como uma “farsa” e disse que países europeus estão “à beira da destruição por causa da agenda da energia verde”




O esforço diplomático está concentrado na direção de evitar que o evento termine em discussões inconclusivas. Diretora-executiva da COP30, Ana Toni disse a VEJA que o governo brasileiro trabalha para atingir três grandes metas em Belém. O primeiro resultado esperado é o reforço do multilateralismo, ou seja, a necessidade de que os países resolvam os problemas globais juntos, de forma negociada. O segundo é mostrar de que forma os acordos climáticos aprovados pela comunidade internacional já começaram a impactar, para melhor, o dia a dia das pessoas. “Hoje, muitas tecnologias que vêm se tornando cada vez mais comuns, como o carro híbrido, elétrico ou a biocombustível, e o painel solar no telhado de casa, surgiram em muitos casos estimuladas por resolver o problema das mudanças climáticas, ou seja, como consequência desses acordos”, diz Ana. O terceiro resultado almejado na COP30 é acelerar a implementação de medidas não apenas para conter o aquecimento global, mas também para promover a adaptação aos seus efeitos. “Para isso, precisamos ter o engajamento não só de quem estará envolvido nas negociações, mas também dos bancos, do setor privado e de outros atores fundamentais para acelerar as ações climáticas”, completa a diretora-executiva.

A expectativa em torno da COP30 também recai sobre a forma como serão recebidos os acordos e iniciativas que cada país levará à mesa de negociações. Na condição de anfitrião, o Brasil é chamado a dar o exemplo. “O governo lançou o Plano Clima no ano passado, reforçando o compromisso com o meio ambiente”, afirma Marta Salomon, especialista em políticas climáticas do Instituto Talanoa. O programa estabelece que o país deverá cortar de 59% a 67% das emissões de gases causadores de efeito estufa até 2035 e zerá-las até 2050.



NEGACIONISMO — Trump na ONU: para ele, o aquecimento global é uma farsa

Durante a COP, o Brasil também pretende apresentar mecanismos econômicos voltados a atrair recursos que permitam transformar metas e acordos climáticos em ações concretas. Entre eles está o Fundo Florestas Tropicais para Sempre (TFFF, na sigla em inglês), que prevê o pagamento a comunidades rurais e povos indígenas para que combatam o desmatamento. Em Nova York, após discursar na ONU, Lula anunciou que o Brasil fará um aporte inicial de 1 bilhão de dólares no fundo, com o objetivo de estimular a adesão de outros países. A expectativa do Planalto é que, até o início da COP30, os aportes cheguem a 25 bilhões de dólares e possam alcançar 125 bilhões quando o fundo estiver plenamente operacional. O governo também levará a Belém propostas ligadas ao mercado de carbono — que permite compensar emissões por meio do financiamento de projetos de captura de gases — e à restauração florestal, entre outras iniciativas.


Para assegurar legitimidade e adesão às soluções que forem definidas na COP30, o ideal seria contar com negociadores dos 198 países signatários da UNFCCC. Até agora, 146 delegações confirmaram presença, mas apenas 79 comunicaram oficialmente ao governo brasileiro que já garantiram hospedagem. O maior desafio tem sido acomodar todos os participantes. Belém dispunha de poucos estabelecimentos com o padrão recomendado pela ONU, mas o governo federal afirma que, até o início da conferência, a cidade terá 53 000 leitos disponíveis.

Três grandes hotéis estão em construção em Belém — Tivoli, Vila Galé e Transamérica — e, para ampliar a oferta, dois navios de cruzeiro com cerca de 6 000 leitos ficarão ancorados no Porto de Outeiro. A estrutura temporária montada para a conferência também inclui a Vila COP, com 406 quartos. O preço médio das diárias, porém, gerou queixas de delegações, sobretudo de países mais pobres. “Já conseguimos reduzir em mais de 30% as tarifas aplicadas de forma abusiva”, afirmou o governador Helder Barbalho durante a Climate Week, em Nova York, onde apresentou um balanço dos impactos positivos da COP para a capital paraense. Nos últimos dias, o Planalto juntou-se a esse esforço, ameaçando até realizar intervenção em caso de abusos.



TRANSFORMAÇÃO - Obras em Belém: prioridade na ampliação da coleta de esgoto e em outras melhorias na cidade

O Brasil vive uma verdadeira corrida contra o tempo para entregar tudo o que foi prometido para a COP30. A conferência, além de colocar o país sob os holofotes internacionais, promete revitalizar uma cidade marcada por graves carências estruturais, como baixos índices de saneamento, deficiências no transporte público e infraestrutura urbana precária. Há, de fato, obras relevantes em andamento que devem deixar legado para a população de Belém. Os investimentos previstos chegam a 7 bilhões de reais, somando recursos públicos e privados, e incluem desde a modernização de vias nas áreas centrais até a ampliação da rede de esgoto — que até recentemente atendia a apenas 20% dos domicílios, ante uma média nacional de 60%. Os toques finais na vitrine brasileira para o mundo estão sendo preparados, mas o desafio é entregar tudo dentro do prazo. Afinal, não está em jogo apenas a imagem do Brasil como anfitrião de um megaevento global: também encontra-se sob holofotes a capacidade de liderança do país no meio ambiente em um momento crucial para o futuro do planeta.

Publicado em VEJA de 25 de setembro de 2025, edição nº 2963