Tensao política - A condenação | VEJA


Maio de 2020. O nível de tensão entre o governo e o Supremo Tribunal Federal caminhava para atingir o seu ponto mais alto quando o ministro Alexandre de Moraes autorizou uma operação que tinha como alvos apoiadores de Jair Bolsonaro apontados como disseminadores de informações falsas sobre a Corte. Havia rumores de que a etapa seguinte da investigação miraria os filhos do capitão, inclusive com a prisão de um deles. O então presidente reagiu. Em um pronunciamento feito na porta do Palácio da Alvorada, advertiu que as coisas tinham um limite. Sem citar nomes, disse que não iria mais admitir a “atitude de certas pessoas”. E, por fim, num tom de voz acima do normal e utilizando um palavrão, vaticinou: “Acabou, p.!”. A declaração era mais do que um arroubo movido por uma suposta indignação. Depois disso, vieram as manifestações de rua, os acampamentos em frente aos quartéis, as suspeitas sobre a segurança do processo eleitoral, as reuniões secretas com militares, as minutas, os planos de assassinato e o sinistro dia 8 de janeiro de 2023 — sequência de fatos que, segundo a acusação da Procuradoria-Geral da República, estavam interligados, faziam parte de uma trama para subverter a democracia e levaram o ex-presidente da República e sete de seus antigos auxiliares ao banco dos réus cinco anos depois.



“Jair Messias Bolsonaro exerceu a função de líder da estrutura criminosa e recebeu ampla contribuição de integrantes do governo federal e das Forças Armadas, utilizando-se da estrutura do Estado para a implementação de seu projeto autoritário de poder.” – Ministro Alexandre de Moraes

Setembro de 2025. Numa decisão sem precedentes, a Primeira Turma do STF considerou Jair Bolsonaro culpado pelos crimes de golpe de Estado, tentativa de abolição do estado democrático de direito, organização criminosa, deterioração do patrimônio e dano contra o patrimônio tombado. A sentença de 27 anos e três meses de prisão pode ser decisiva para encerrar a carreira do ex-­pre­si­den­te, que tem 70 anos. Os outros sete condenados pela trama golpista foram os generais Braga Netto (ex-ministro da Casa Civil), Augusto Heleno (ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional) e Paulo Sérgio Nogueira (ex-ministro da Defesa), o almirante Almir Garnier (ex-comandante da Marinha), além dos delegados Anderson Torres (ex-ministro da Justiça) e Alexandre Ramagem (ex-diretor da Abin).Setembro de 2025. Numa decisão sem precedentes, a Primeira Turma do STF considerou Jair Bolsonaro culpado pelos crimes de golpe de Estado, tentativa de abolição do estado democrático de direito, organização criminosa, deterioração do patrimônio e dano contra o patrimônio tombado. A sentença de 27 anos e três meses de prisão pode ser decisiva para encerrar a carreira do ex-­pre­si­den­te, que tem 70 anos. Os outros sete condenados pela trama golpista foram os generais Braga Netto (ex-ministro da Casa Civil), Augusto Heleno (ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional) e Paulo Sérgio Nogueira (ex-ministro da Defesa), o almirante Almir Garnier (ex-comandante da Marinha), além dos delegados Anderson Torres (ex-ministro da Justiça) e Alexandre Ramagem (ex-diretor da Abin).

O veredicto é um marco para a Justiça brasileira. Foi a afirmação de que a lei pode e deve prevalecer sobre interesses subalternos, sejam eles políticos, econômicos ou de qualquer outra natureza. No caso do ex-presidente, também representa a confirmação de que o tribunal é capaz de suportar pressões sem se desviar de sua missão principal. Bolsonaro foi declarado culpado por quatro dos cinco ministros que atuaram no processo. Para Alexandre de Moraes, Flávio Dino, Cármen Lúcia e Cristiano Zanin, não restou um milímetro de dúvida sobre a participação dele na maquinação de um levante no apagar das luzes de sua gestão. A principal divergência ficou por conta de Luiz Fux. O magistrado considerou que nem o STF nem a Primeira Turma eram locais adequados para julgar os acusados, disse que houve cerceamento da defesa e pediu a anulação do processo. O ministro ainda questionou a tipificação dos crimes imputados aos acusados, chamou a atenção para conclusões sem provas apontadas na denúncia da Procuradoria-Geral da República e ressaltou que não compete ao Supremo fazer juízos políticos.



“Jair Bolsonaro tinha condição de figura dominante na organização criminosa. Ele e Braga Netto ocuparam essa função. Eles tinham domínio de todos os eventos narrados no processo.” – Ministro Flávio Dino

Foram dois anos e oito meses do início da investigação até o fim do julgamento — trabalho que revelou minúcias do planejamento da conspiração concebida dentro do Palácio da Alvorada com a participação de civis e militares que ocupavam cargos importantes no governo, oficiais de alta patente e sicários treinados para eliminar adversários e manter Bolsonaro no poder, todos atuando sob a inspiração, orientação e liderança do então presidente da República, de acordo com a denúncia. Como era esperado, o voto de Alexandre de Moraes, relator do caso, balizou a decisão da maioria. Durante quase seis horas, ele enfileirou uma cadeia de eventos golpistas ocorridos a partir de 2021 — a campanha para desacreditar as urnas eletrônicas, as ameaças ao STF, o apoio a manifestações que pediam intervenção militar, os acampamentos em frente aos quartéis, a confecção de minutas que davam verniz de legalidade à anulação das eleições de 2022, o plano para “neutralizar” autoridades, os protestos violentos durante a diplomação do presidente eleito e a invasão e depredação do Palácio do Planalto, do Congresso e do Supremo Tribunal no dia 8 de janeiro. Moraes listou treze atos classificados por ele como “executórios”, ou seja, iniciativas que foram efetivamente colocadas em prática com o objetivo de manter o ex-presidente no Palácio do Planalto. “O réu Jair Messias Bolsonaro exerceu a função de líder da estrutura criminosa e recebeu ampla contribuição de integrantes do governo federal e das Forças Armadas, utilizando-se da estrutura do Estado brasileiro para a implementação de seu projeto autoritário de poder”, resumiu o relator.


 

“Os réus constituíram e estabeleceram uma organização estável, com duração superior a um ano, cujo planejamento descrito em inúmeros documentos apreendidos previa ações coordenadas para a permanência no poder de Jair Messias Bolsonaro.” – Ministro Cristiano Zanin

À exceção de Luiz Fux, os outros ministros, com pequenas discordâncias, seguiram na mesma linha. Flávio Dino, por exemplo, defendeu a aplicação de penas menores aos generais Augusto Heleno e Paulo Sérgio e também a Alexandre Ramagem — personagens que, segundo ele, tiveram uma “importância menor” na trama. O julgamento ocorreu sob um inédito clima de pressão. No momento em que o relator apresentava seu voto, a Embaixada dos Estados Unidos postou uma mensagem com novas ameaças ao relator e aos demais integrantes da Corte, particularmente contra Flávio Dino, Cármen Lúcia e Cristiano Zanin, que também votaram pela condenação do grupo. Antes do julgamento, Moraes já havia sido enquadrado na chamada Lei Magnitsky, um dispositivo que permite represálias financeiras em nível global a qualquer cidadão envolvido em crimes como terrorismo, genocídio e ações que atentem contra os direitos humanos. Donald Trump impôs ainda um tarifaço aos produtos brasileiros como forma de pressionar o STF a absolver Bolsonaro. Na terça-feira 9, em nova investida, a Casa Branca informou que os Estados Unidos podem usar a força militar para proteger a liberdade de expressão, inclusive no Brasil. O veredicto mostrou que as tentativas de intimidação não surtiram efeito.



“Ele (Bolsonaro) é o causador, o líder da organização que se movia de todas as formas e com articulação alinhada para que se chegasse ao objetivo da manutenção ou tomada do poder.” – Ministra Cármen Lúcia

Surpreendente, o voto de Luiz Fux, que se estendeu por mais de treze horas, não mudou o resultado do julgamento, mas serviu para dar sustentação jurídica aos argumentos apresentados pela defesa do ex-presidente, para que o governo americano mantenha a pressão sobre o tribunal e também abriu espaço para futuros pedidos de revisão da sentença. O ministro absolveu Jair Bolsonaro de todas as acusações sob o argumento de que não existem provas cabais de que o capitão tivesse conhecimento de articulações golpistas ao seu redor, de que tivesse endossado pendores antidemocráticos ou mesmo se omitido em episódios como os atos de vandalismo no 8 de Janeiro. “Ninguém pode ser punido simplesmente por ser merecedor de pena de acordo com convicções morais, porque praticou uma ordinarice ou um fato repugnante, porque é um canalha, porque é um patife. Só pode ser punido quando tiver preenchido os requisitos daquela punição descritos na lei penal”, declarou. Fux, no entanto, condenou Braga Netto e o delator, Mauro Cid, ambos personagens próximos a Bolsonaro, pelo crime de tentativa de abolição do estado democrático de direito, por entender que eles participaram e anuíram com ações pró-sublevação.


No caso de Bolsonaro, o ministro criticou duramente a peça de acusação do Ministério Público e disse que o procurador-geral se valeu por diversas vezes de deduções, sem evidências concretas, para colocar o ex-­presidente em cenas de crime. É o caso, segundo Fux, das imputações de que Bolsonaro incentivou os atos de 8 de Janeiro e de que provavelmente tomou conhecimento do plano de assassinato de autoridades.



“O Ministério Público não apresentou provas de vínculos do ex-presidente com os participantes das diversas manifestações. Não há provas, portanto, das alegações da acusação de que o réu teria ‘liderança sobre o movimento golpista’ ou um ‘controle exercido sobre os manifestantes’.” – Ministro Luiz Fux

Ainda haverá questionamentos jurídicos por parte das defesas dos réus, mas é improvável que o veredicto sofra alguma alteração significativa de imediato, mesmo com a forte divergência de Luiz Fux. A médio prazo, a tropa bolsonarista alimenta esperanças de uma mudança de composição de forças no STF com a vitória de um candidato de oposição ao Palácio do Planalto. Caberá ao novo presidente nomear pelo menos três novos ministros. Em tese, seria mais fácil formar uma maioria para anular o processo, levando em conta a tese de Fux de que o Supremo não era o foro adequado.




Preso em regime domiciliar, Bolsonaro não havia se pronunciado sobre o veredicto até o fim da tarde da quinta-feira 11. Depois de dizer que não cumpriria decisões judiciais, de incentivar manifestações contra o Supremo, de levantar dúvidas sobre a credibilidade das urnas eletrônicas, de planejar anular as eleições de 2022 e de afirmar que nunca seria preso, ele entra para a história como o primeiro ex-presidente da República a ser sentenciado por golpe de Estado.




Publicado em VEJA de 12 de setembro de 2025, edição nº 2957