Denúncia coloca futuro de Bolsonaro em xeque... | VEJA


Jair Bolsonaro nunca escondeu de ninguém sua certeza de que forças ocultas conspiravam contra ele. Por medo de sabotagem, evitava viagens em jatos particulares. Protegido por um batalhão de seguranças, não abria mão de dormir com uma pistola embaixo do travesseiro. Para afastar risco de envenenamento, pedia a alguém para experimentar a comida antes de ser servida. De todos os fantasmas que habitavam a mente do ex-presidente, no entanto, o pior era o que soprava em seus ouvidos a existência de um complô para apeá-lo do poder. Dele fariam parte ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), partidos de esquerda e “gente do sistema”. A trama imaginária envolvia uma maquinação que teria fraudado as urnas eletrônicas em 2018. “Era para eu ter vencido no primeiro turno”, costumava repetir Bolsonaro, ao tentar explicar o flagrante paradoxo. Para a Procuradoria-Geral da República, esse comportamento paranoico era apenas um ardil para dissimular o início do planejamento de um cerco à democracia — obsessão que, se comprovada, agora pode render até quarenta anos de prisão ao ex-presidente.



COLEGIADO — Plenário do STF: magistrados da Corte deram eloquentes sinais de união diante da nova afronta

o vincular o aumento de tarifas à continuidade do processo que vai julgar Jair Bolsonaro dentro de pouco mais de um mês, o governo americano faz chantagem. Empresas nacionais podem entrar em colapso, empregos serão perdidos e a economia pode pagar um alto preço caso a “perseguição” ao ex-presidente continue. A única maneira de evitar que isso aconteça seria o Supremo, sabe-se lá de que forma, fazer de conta que o 8 de Janeiro não existiu, invalidar dezenas de depoimentos que ajudaram a reconstituir os últimos dias de 2022 e queimar as provas da trama golpista urdida por um grupo liderado pelo ex-­presidente. Ao tentar constranger Alexandre de Moraes e ameaçar estender as sanções aos outros ministros, o governo americano quer intimidar a Corte da maneira mais ignóbil, em um ataque direto e inédito ao Estado brasileiro. Moraes foi enquadrado na chamada Lei Magnitsky, um dispositivo que permite alcançar em nível global qualquer indivíduo envolvido em crimes graves como terrorismo, genocídio, tortura, execuções e ações que atentem contra a democracia. As restrições de cunho econômico incluem o bloqueio de bens, contas bancárias e ativos nos Estados Unidos ou em qualquer instituição do mundo que opere em dólar. É um banimento inadmissível, sustentado por argumentos falsos.




ABSURDO - Alexandre de Moraes: ministro foi colocado em lista ao lado de ditadores, traficantes e políticos sanguinários

Ao vincular o aumento de tarifas à continuidade do processo que vai julgar Jair Bolsonaro dentro de pouco mais de um mês, o governo americano faz chantagem. Empresas nacionais podem entrar em colapso, empregos serão perdidos e a economia pode pagar um alto preço caso a “perseguição” ao ex-presidente continue. A única maneira de evitar que isso aconteça seria o Supremo, sabe-se lá de que forma, fazer de conta que o 8 de Janeiro não existiu, invalidar dezenas de depoimentos que ajudaram a reconstituir os últimos dias de 2022 e queimar as provas da trama golpista urdida por um grupo liderado pelo ex-­presidente. Ao tentar constranger Alexandre de Moraes e ameaçar estender as sanções aos outros ministros, o governo americano quer intimidar a Corte da maneira mais ignóbil, em um ataque direto e inédito ao Estado brasileiro. Moraes foi enquadrado na chamada Lei Magnitsky, um dispositivo que permite alcançar em nível global qualquer indivíduo envolvido em crimes graves como terrorismo, genocídio, tortura, execuções e ações que atentem contra a democracia. As restrições de cunho econômico incluem o bloqueio de bens, contas bancárias e ativos nos Estados Unidos ou em qualquer instituição do mundo que opere em dólar. É um banimento inadmissível, sustentado por argumentos falsos.


“Moraes é responsável por uma campanha opressiva de censura e prisões arbitrárias que violam os direitos humanos e faz perseguições políticas, incluindo o ex-presidente Jair Bolsonaro.” – Scott Bessent, secretário do Tesouro

Scott Bessent, o secretário do Tesouro, por exemplo, afirmou que o ministro atuou contra a liberdade de expressão, inclusive de cidadãos americanos. “Moraes é responsável por uma campanha opressiva de censura e prisões arbitrárias que violam os direitos humanos e fazem perseguições políticas, incluindo o ex-presidente Jair Bolsonaro. A ação de hoje deixa claro que o Tesouro vai continuar a responsabilizar todos que ameaçam os interesses dos EUA e as liberdades dos nossos cidadãos”, ressaltou o assessor de Donald Trump. A Lei Magnitsky tem uma abrangência universal. Ela proíbe empresas americanas instaladas lá ou aqui de manter qualquer tipo de relação comercial com o sancionado. Na prática isso significa que o ministro terá problemas, de agora em diante, em utilizar cartões de crédito, acessar redes sociais, manter uma conta de e-mail, fazer uma compra e até pedir um carro por aplicativo — serviços oferecidos por big techs como Google, Amazon e Uber. As punições podem ser estendidas a parentes, se houver indicativos de que eles o estejam ajudando a burlar as regras.



RÉU – Jair Bolsonaro: retaliação americana ao Brasil tem o objetivo de influenciar o julgamento do ex-presidente no STF

Os dias que se seguiram à derrota foram intensos e permeados de discussões sobre medidas que impediriam a posse de Lula. Na peça de acusação, Gonet cita como evidência da ativa participação de Bolsonaro na trama golpista um áudio enviado a Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, em que o general Mario Fernandes, que trabalhava no Palácio do Planalto, relata uma conversa na qual o ex-presidente teria afirmado que o grupo golpista tinha autorização para agir até 31 de dezembro. Segundo o procurador, o militar se referia ao plano que previa o assassinato de Lula, do vice-presidente, Geraldo Alckmin, e do ministro Alexandre de Moraes. “O áudio não deixa dúvidas de que a ação violenta era conhecida e autorizada por Jair Messias Bolsonaro”, escreveu Gonet. Acusação tão grave quanto essa deveria ter vindo acompanhada de maiores elementos na denúncia, o que não ocorreu.



“Que este seja um aviso para quem atropela os direitos fundamentais de nossos compatriotas.” – Marco Rubio, secretário de Estado

Mesmo que Moraes não tenha bens nos Estados Unidos, a inclusão do nome dele na lista da Office of Foreign Assets Control (Ofac), o órgão encarregado das sanções, abre caminho para punições de empresas nacionais. Já houve precedente. Em 2015, o Departamento do Tesouro americano multou o Banco do Brasil depois de detectar que um braço da instituição em Nova York operou transações financeiras com uma entidade do Irã alvo de sanções. Ainda como exemplo, o Banco do Brasil, em tese, pode ser multado e até impedido de operar no exterior se decidir manter a conta pela qual o ministro recebe hoje seus proventos. “Todas as empresas e instituições sujeitas à jurisdição dos Estados Unidos ficam obrigadas a encerrar vínculos com o sancionado, mesmo que não sejam notificadas para isso. Isso vale para todas, sem exceção: bancos, companhias aéreas, plataformas digitais e bancos”, explica o professor de direito internacional da USP, Solano de Camargo.



REAÇÃO — Lula, que fez reunião de emergência no Planalto após as medidas: “Justiça não se negocia”

O nome do ministro está em uma lista que tem figuras nefastas como o ditador venezuelano Nicolás Maduro, chefes de cartéis mexicanos e genocidas cruéis. Isso, por si só, além de altamente constrangedor, é um completo abuso. O fato desse abuso se prestar a outro ainda maior — pressionar a Justiça brasileira — torna a decisão do governo americano ainda mais abjeta. “Esse ataque a Moraes se estende a todo o Judiciário e também ao Brasil enquanto nação, porque compete ao Estado brasileiro zelar pela proteção de suas instituições”, ressalta Victor Del Vecchio, mestre em direito pela USP.



CHANTAGEM — “O custo de apoiar Alexandre de Moraes, seja por omissão, cumplicidade ou conveniência, será insuportável. Chegou a hora da escolha: estar com Moraes ou com o Brasil”

O ministro conversou com o presidente Lula sobre esse assunto em maio passado, quando o secretário de Estado, Marco Rubio, disse pela primeira vez que pensava em incluí-­lo na lista de terroristas, assassinos e violadores de direitos humanos. Na ocasião, o magistrado queria que a diplomacia brasileira se antecipasse às ameaças e deixasse claro para as autoridades americanas o que parecia óbvio: qualquer tipo de sanção contra ele não mudaria um milímetro a disposição da Corte de julgar Bolsonaro. Preventivamente, o governo Lula listou bancos que poderiam ser atingidos pela crise e também as empresas e propriedades de familiares de ministros mantidas no exterior. A diplomacia, porém, pouco ou nada fez, e as ameaças foram aumentando de intensidade, conforme o processo avançava no STF.



FIRMEZA - Barroso: “A Corte não se desviará do seu papel constitucional”

Na quarta-feira 30, quando as medidas foram anunciadas, o chanceler Mauro Vieira estava em Washington ainda tentando estabelecer algum canal de comunicação com o governo americano. Consta que ele chegou a se encontrar com Marco Rubio momentos antes do anúncio da sobretaxa. Mas era tarde demais. A decisão já havia sido tomada. No caso do tarifaço econômico, a pancada foi dura, mas em uma intensidade menor do que o previsto. A lista contém um volume grande de exceções — 694 produtos pagarão apenas a tarifa mínima de 10%, entre os quais aviões, produtos siderúrgicos, suco de laranja e petróleo, mas a mensagem de que a maior potência do planeta acredita que pode, do dia para a noite, impor sanções sem nenhum amparo lógico ou legal abre uma avenida de incertezas políticas e econômicas. O que prevaleceu na revisão para baixo de alguns itens não foi um surto de consciência do presidente dos Estados Unidos, mas a necessidade de proteger a indústria e os consumidores americanos, avalia Ibiapaba Netto, diretor da entidade que congrega os exportadores de suco de laranja.



NÃO ACABOU — Alckmin: o vice-presidente continuará à frente das negociações que envolvem as tarifas de importação

A reação das autoridades brasileiras se limitou, por enquanto, ao campo da retórica. O presidente Lula, satisfeito com pesquisas que têm sido apresentadas a ele segundo as quais o confronto com Trump vem ajudando a recuperar parte de sua popularidade, divulgou uma nota em que classificou como inaceitável a tentativa de interferência do governo americano no STF. “Justiça não se negocia”, afirmou. No Supremo, os ministros se solidarizaram com Moraes nos bastidores e, publicamente, divulgaram uma nota sóbria deixando claro que a Corte “não se desviará do seu papel de cumprir a Constituição e as leis do país, que asseguram a todos os envolvidos o devido processo legal e um julgamento justo”. E houve quem festejasse, a começar pelo deputado Eduardo Bolsonaro. “O custo de apoiar Alexandre de Moraes, seja por omissão, cumplicidade ou conveniência, será insuportável. Para os indivíduos e também para suas famílias. Chegou a hora da escolha: estar com Moraes ou com o Brasil”, escreveu o parlamentar, tido como o principal incentivador das ações retaliatórias do governo americano. O pretexto do Zero Três é “restabelecer a democracia no Brasil”, como se isso fosse necessário. Pura balela. O objetivo claro de sua cavalgada pró-Trump é salvar o pai da prisão por tentativa de golpe.



TAXA MENOR - Exportações: aviões, aço, suco e petróleo foram poupados

A temperatura deve aumentar nas próximas semanas. As cúpulas da Câmara e do Senado preveem uma “crise sem precedentes” na retomada dos trabalhos no Congresso, marcada para a próxima semana. Eleitos com o apoio do PT de Lula e do PL de Bolsonaro, Hugo Motta (Republicanos-PB) e Davi Alcolumbre (União Brasil-AP) serão pressionados pelos dois lados. As lideranças bolsonaristas do PL vão tentar aproveitar o momento para fazer avançar o projeto da anistia aos condenados do 8 de Janeiro e as propostas que reduzem as prerrogativas dos ministros do STF. Do outro lado, o PT quer impulsionar o pedido de cassação do mandato de Eduardo Bolsonaro por “traição à pátria”. É difícil fazer uma projeção mais precisa sobre as consequências políticas e econômicas das medidas anunciadas pelo governo Trump. A única certeza é que o estrago nunca é pequeno quando radicais se unem a um presidente autoritário para pôr em prática um ataque frontal à soberania brasileira.


Publicado em VEJA de 1 de agosto de 2025, edição nº 2955