Trump mistura interesses políticos e econômicos em ataque tarifário ao Brasil | VEJA


Os primeiros sinais de que algo estava na iminência de acontecer surgiram na segunda-feira 7, quando Donald Trump publicou uma mensagem afirmando que Jair Bolsonaro era perseguido e que ele estava acompanhando de perto a “caça às bruxas” contra o ex-presidente, sua família e seus apoiadores. No dia seguinte, em uma entrevista na Casa Branca, o presidente dos Estados Unidos disse que “muito em breve” taxaria as importações oriundas dos países-membros do Brics, porque eles estariam articulando “políticas antiamericanas”, entre elas o uso de moeda local em substituição ao dólar nas transações financeiras — proposta defendida pelo Brasil na reunião de cúpula dos líderes que havia acabado de terminar no Rio de Janeiro. Em resposta às ameaças, Lula disse que o princípio da reciprocidade poderia ser invocado e classificou as declarações de Trump como irresponsáveis. “Ele precisa saber que o mundo mudou. Não queremos imperador”, disse o presidente. Era, até esse ponto, um embate retórico, movido por interesses contrariados e visões políticas divergentes sobre regras do comércio internacional.



GUERRA — Lula: presidente anunciou que deve invocar a lei da reciprocidade e sobretaxar os produtos americanos

Dois dias depois da fala do petista, porém, o governo americano realizou um ataque-surpresa. Em carta enviada ao presidente Lula, Trump anunciou que as exportações brasileiras serão submetidas a uma tarifa adicional de 50% a partir de agosto. Sob o ponto de vista econômico, a medida, se efetivamente entrar em vigor, terá impacto profundo na indústria nacional. Os Estados Unidos são um importante mercado para produtos como aço, petróleo e aviões. Apenas nos primeiros seis meses deste ano, o Brasil vendeu aos americanos o equivalente a 20 bilhões de dólares. Com a taxação, as mercadorias ficarão mais caras para quem importa e as transações comerciais entre os dois países tenderão a diminuir, desorganizando toda a cadeia produtiva. Sob o ponto de vista político, a confusão também promete ser de grandes proporções. Pego no contrapé, o governo reagiu à ofensiva seguindo o protocolo indicado para uma guerra comercial — o Planalto anunciou que pretende sobretaxar na mesma proporção as importações oriundas dos EUA, enquanto tentará resolver o impasse por meio dos canais diplomáticos.



ALVOS — Moraes: acusação de que o ministro emite ordens de censura secretas e ilegais contra plataformas dos EUA

O problema é que, a exemplo de uma guerra convencional, o lado mais frágil tende a levar a pior quando não há equilíbrio de forças. E o Brasil é o lado mais fraco dessa disputa. Em 2 de abril, quando Donald Trump anunciou as novas taxas de importação que seriam cobradas sobre os produtos de cada um dos países com os quais os Estados Unidos mantêm relações comerciais, muitos especialistas em comércio exterior chegaram a avaliar que, em termos comparativos, os brasileiros tinham se dado bem. As exportações para os Estados Unidos pagariam “apenas” os 10% de alcance universal, ou seja, a tarifa básica à qual todas as nações seriam submetidas. O fato de Trump ter definido alíquotas muito mais altas para parceiros como Vietnã (um total de 46%) ou China (34%, que escalaram para mais de 100% depois) foi entendido até mesmo como uma oportunidade para empresários brasileiros ocuparem espaços no mercado americano. De uma hora para outra, a conta mudou completamente. A taxa imposta agora ao Brasil é a mais alta de todas as que foram anunciadas para mais de vinte países. Inicialmente poupado do pior, o Brasil passou a ser o mais atingido pela guerra tarifária de Trump. Não há nenhuma justificativa econômica para isso.

O problema é que, a exemplo de uma guerra convencional, o lado mais frágil tende a levar a pior quando não há equilíbrio de forças. E o Brasil é o lado mais fraco dessa disputa. Em 2 de abril, quando Donald Trump anunciou as novas taxas de importação que seriam cobradas sobre os produtos de cada um dos países com os quais os Estados Unidos mantêm relações comerciais, muitos especialistas em comércio exterior chegaram a avaliar que, em termos comparativos, os brasileiros tinham se dado bem. As exportações para os Estados Unidos pagariam “apenas” os 10% de alcance universal, ou seja, a tarifa básica à qual todas as nações seriam submetidas. O fato de Trump ter definido alíquotas muito mais altas para parceiros como Vietnã (um total de 46%) ou China (34%, que escalaram para mais de 100% depois) foi entendido até mesmo como uma oportunidade para empresários brasileiros ocuparem espaços no mercado americano. De uma hora para outra, a conta mudou completamente. A taxa imposta agora ao Brasil é a mais alta de todas as que foram anunciadas para mais de vinte países. Inicialmente poupado do pior, o Brasil passou a ser o mais atingido pela guerra tarifária de Trump. Não há nenhuma justificativa econômica para isso.


PROMESSA — Bolsonaro: o ex-presidente ouviu que sua situação seria tratada como prioridade pela Casa Branca

Na carta enviada ao governo brasileiro, Trump tenta se imiscuir em questões políticas internas e até em instituições como o STF, o que é inadmissível. Desde que tomou posse, o presidente americano abriu várias frentes de batalha em sua tresloucada guerra comercial com metade do mundo. Embora num raio mais periférico, o Brasil sempre esteve na mira. Trump, como se sabe, cultua uma certa admiração pelo ex-presidente Jair Bolsonaro. Antes mesmo de ser oficializado como candidato ao governo dos Estados Unidos, em 2024, ele disse a Eduardo Bolsonaro, o filho Zero Três do capitão, que a situação jurídica do ex-presidente seria tratada como prioridade caso retornasse à Casa Branca. Faria, enfim, o que fosse possível para ajudar Bolsonaro a se livrar do processo que tramita no STF, onde é acusado de tramar um golpe de Estado no fim de seu governo.



CAMPANHA — Eduardo: dossiês com um inventário de decisões “controversas” do STF entregues a autoridades americanas




JULGAMENTO — 8 de Janeiro: processo por tentativa de golpe em fase final

Na carta de Trump, não há citação direta a Alexandre de Moraes — nem precisava. Segundo o presidente americano, a represália comercial também é consequência de “ataques insidiosos do Brasil contra eleições livres e da violação fundamental da liberdade de expressão dos americanos, como recentemente evidenciado por um ministro da Suprema Corte brasileira, que emitiu centenas de ordens de censura secretas e ilegais a plataformas de mídia social dos EUA”. Trump disse ainda que o julgamento de Bolsonaro não deveria estar acontecendo, que a forma como o ex-presidente está sendo tratado é uma “vergonha internacional” e que a “caça às bruxas” precisa ser estancada “imediatamente” — essa última palavra destacada em letras garrafais.

A tarifa excepcionalmente alta anunciada para o Brasil e as motivações políticas foram tão flagrantes que chamaram a atenção do economista americano Paul Krugman. Em texto publicado na internet, ele lembrou que as exportações para os Estados Unidos representam apenas 2% do PIB brasileiro. “Trump realmente acha que pode usar tarifas para intimidar uma grande nação, que nem é muito dependente do mercado americano, a abandonar a democracia. Isso é maldoso e megalomaníaco”, escreveu o Prêmio Nobel de Economia. Pode até ser, como avalia Krugman, que Trump não atinja seus objetivos políticos. Mas o dano à economia brasileira será quase certo. O banco Goldman Sachs estimou que a tarifa adicional de 50%, se mantida, deve provocar uma redução de 0,3 a 0,4 ponto percentual no PIB brasileiro. Está longe de ser um impacto desprezível.



PREOCUPAÇÃO — Exportações: o mercado americano é o principal comprador dos aviões fabricados no Brasil

O governo já contabilizava que haveria alguma escalada retórica e econômica contra o Brasil desde que Trump retornou ao poder, mas com foco direcionado essencialmente a integrantes da Suprema Corte que, além do julgamento de Bolsonaro, assumiram a dianteira em costuras para a regulação das chamadas big techs. Alvo preferencial das reprimendas discutidas na Casa Branca, Alexandre de Moraes também é relator de um processo que resultou num barulhento embate entre ele e o bilionário Elon Musk — dono da rede social X, que, por ordens do ministro, foi temporariamente suspensa no Brasil por descumprir ordens de retirar do ar perfis considerados extremistas. Decisões recentes do ministro ainda tisnaram a plataforma de vídeos Rumble, usada por apoiadores de direita e parceira do grupo de mídia do próprio Donald Trump, por abrigar contas de bolsonaristas investigados pelo tribunal. Por tudo isso, o Planalto considerava que petardos, se fossem realmente disparados, teriam apenas Moraes como alvo. Já havia inclusive toda uma estratégia montada para defendê-lo.

A decisão de Trump de aplicar tarifas aos produtos brasileiros, além de ter a capacidade de se converter em uma tragédia econômica, pode ser um campo minado para os interesses de políticos que apostam no caos. “Parece que essa taxação foi aplicada contra um país inimigo”, diz José Augusto de Castro, presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil. Aeronaves e equipamentos para a engenharia civil e construção, por exemplo, estão entre as exportações que mais dependem do mercado americano, com 62% e 52% de suas vendas externas, respectivamente. Logo depois do anúncio, governistas e oposicionistas tentaram culpar uns aos outros pelas prováveis consequências que a medida deve provocar no setor produtivo brasileiro. Para aliados do ex-presidente Bolsonaro, o responsável pela ofensiva americana seria o presidente Lula, que há tempo vem negligenciando a diplomacia e confrontando a Casa Branca ao defender, por exemplo, o fortalecimento de relações comerciais com países do Brics, o apoio aos palestinos na guerra contra Israel ou a condenação dos bombardeios ao Irã — além do fato de o petista ter declarado apoio a Kamala Harris, candidata derrotada por Trump nas últimas eleições. Em uma rede social, Bolsonaro disse que é “perseguido porque segue vivo na consciência popular” e que, por isso, “tentam aniquilá-lo politicamente, moralmente e judicialmente”. Integrantes do governo, em contrapartida, acusam o ex-presidente de conspirar contra o país ao contratar uma crise em sua cruzada para tentar escapar da prisão. Em nota, Lula afirmou que “o Brasil é um país soberano que não aceitará ser tutelado por ninguém”. Os ministros do Supremo não se pronunciaram.



PREJUÍZOS — Siderurgia: indústria do aço será uma das primeiras a sofrer

A absurda investida de Trump é uma mudança de paradigma nas relações entre Brasil e EUA. “Não víamos nada parecido com isso desde os anos 60, quando os americanos intervieram diretamente no país para apoiar o golpe militar”, diz o professor Guilherme Meireles, mestre em relações internacionais. “Essa tarifação nada tem a ver com estratégia econômica. O presidente americano está, na verdade, tentando influenciar no julgamento do Bolsonaro, e isso é muito grave”, acrescenta. De fato, é um desatino imaginar que ameaças descabidas podem resultar em interferências em processos judiciais conduzidos por tribunais independentes em países democráticos. No mesmo dia em que Trump postou a primeira mensagem de apoio ao ex-presidente, na segunda-feira, Moraes prorrogou o inquérito em que Eduardo Bolsonaro é investigado por suspeita de tentar obstruir a Justiça. Os apoiadores mais realistas do ex-presidente sabem que é zero a chance de as bravatas do mandatário americano, por mais assustadoras que pareçam, resultarem em alguma mudança no julgamento da trama golpista, que está entrando na etapa final e pode terminar em setembro com a condenação de Bolsonaro e outros seis réus a quase quarenta anos de prisão. Essa é a única certeza daqui em diante.


Publicado em VEJA de 11 de julho de 2025, edição nº 2952