É fogo que, de modo preocupante, conversa com o globo à beira do precipício. Longe dali, no leste europeu, Rússia e Ucrânia travam uma guerra que, desde 2022, já ceifou a vida de 250.000 soldados russos e entre 60.000 a 100.000 ucranianos, sem contar os mais de 13.000 civis. Índia e Paquistão, duas potências nucleares, trocaram hostilidades em maio na maior conflagração militar entre os países do sul asiático em meio século. A China faz manobras militares cada vez mais próximas de Taiwan, em uma nada sutil mostra de força. “O mundo em que vivemos é extremamente instável”, diz Asher Kaufman, diretor do instituto para estudos da paz na Universidade de Notre Dame. Os riscos ficam mais prementes pela ausência de um mediador confiável. A ONU, detentora oficial desse papel, é hoje um organismo desidratado e pouco influente. Trump, autodenominado pacificador de todas as guerras, exibe comportamento errático e até agora não teve sucesso em nenhuma de suas iniciativas de paz. Em vez disso, só tem alimentado desordem e atraído protestos.
Em meio às altas temperaturas do xadrez internacional, a corrida armamentista, uma relíquia da Guerra Fria, volta a ganhar fôlego. No ano passado, os gastos dos governos com defesa totalizaram 2,7 trilhões de dólares, quase 10% a mais do que em 2023 e o maior valor já registrado pelo Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz, em Estocolmo. Preocupada com a guerra no seu terreno e a pouca disposição dos Estados Unidos de atuar em sua defesa, a Europa mais do que dobrou suas importações de armas entre 2020 e 2024. A corrida nuclear também retornou com vigor: os nove países com ogivas — Estados Unidos, Rússia, Reino Unido, França, China, Índia, Paquistão, Coreia do Norte e Israel — aprofundaram seus programas de modernização de armas atômicas nos últimos meses. “O fortalecimento bélico de um país influencia as políticas militares de outro, numa perigosa espiral”, diz o especialista Nan Tian.
Denunciado na Europa e nos Estados Unidos por seu apoio a grupos terroristas e pela declarada intenção de arrasar Israel — e antipatizado pelos vizinhos, por suas pretensões hegemônicas —, o Irã, por mais que negue, avança há décadas no desenvolvimento de armas nucleares e, antes do ataque israelense, os Estados Unidos negociavam um acordo justamente para podar as ambições dos radicais aiatolás. “Israel encontra janelas cada vez menores para agir preventivamente, à medida que o Irã se arma”, afirma a pesquisadora Farah Jan, da Universidade da Pensilvânia. “As consequências dessa lógica mortal se estendem para muito além do Oriente Médio.”
O impacto global mais imediato é no preço do petróleo. O tipo Brent, referência de preço, subiu 7% no dia dos primeiros ataques israelenses. Cerceado por sanções econômicas, o Irã é apenas o nono maior produtor, mas controla o Estreito de Ormuz, ponto de passagem de um quinto dos navios-petroleiros do planeta. O fechamento da rota, uma ameaça sempre presente, provocaria uma crise energética capaz de atrair outros países para a guerra.

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O equilíbrio do Oriente Médio é tão delicado, e tem tantas peças em movimento, que é impossível prever o amanhã. Na melhor das hipóteses, em bom resultado, o regime dos aiatolás cai, arrastando consigo as milícias que o país financia no Iraque, no Líbano, na Síria e no Iêmen e abafando o ímpeto de um detentor de armas nucleares. No pior resultado, Estados Unidos, França, Inglaterra e os países árabes seriam sugados pelo conflito, trazendo mais mortes e uma crise econômica de efeitos imprevisíveis.
Na primeira semana de guerra, Trump não cedeu aos apelos israelenses para entrar no conflito, preferindo atacar o Irã com ameaças, caso o país não aceite desistir de seu programa nuclear. Chegou a afirmar que vetou o plano de Netanyahu de assassinar o líder Ali Khamenei “por enquanto” e deslocou um porta-aviões e dezenas de jatos de guerra e aeronaves-tanque para a região. Até a quinta 19, o presidente americano ainda fazia suspense a respeito de ceder ou não a Israel as superbombas de 20 toneladas capazes de penetrar nos bunkers do programa nuclear iraniano incrustados nas montanhas.

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Netanyahu não se incomodou com a postura ambígua do antigo aliado nesses primeiros dias de guerra, pois Israel demonstrou superioridade diante do inimigo e, de quebra, os ataques contra Teerã revigoraram a imagem do primeiro-ministro, que recebeu apoio declarado do presidente da França, Emmanuel Macron. O chanceler alemão, Friedrich Merz, em tom belicoso, disse que Netanyahu está “fazendo o trabalho sujo” contra um regime que “trouxe morte e destruição ao mundo”. Mesmo com os ventos soprando contra, o núcleo duro da política externa iraniana tem encontro marcado com seus pares europeus na sexta-feira 20, em Genebra, quando estará posta à mesa, mais uma vez, a discussão em torno do programa nuclear de Teerã.
O governo brasileiro foi dos poucos que destoaram ao dar, como de costume, uma resposta torta à crise, condenando firmemente apenas os ataques israelenses, sem mencionar a ameaça nuclear e o papel desestabilizador do regime dos aiatolás. “O Irã declara pública e reiteradamente que quer destruir o Estado judaico, e ter armas nucleares é provocação de possibilidade real”, diz o cientista político Boaz Atzili.

PROTESTO — Manifestação contra Trump: a polarização alcança um novo patamar
Netanyahu, enfraquecido internamente pela tremenda falha na segurança em outubro de 2023, pela incapacidade de resgatar reféns em poder do Hamas, pelas imagens de destruição e fome em Gaza e pelas exigências dos partidos radicais ortodoxos que compõem sua coalizão, aproveitou um momento especialmente vulnerável do Irã para empreender uma ofensiva que tem pleno apoio dentro e fora do país. “Ele opera de acordo com seus instintos de sobrevivência política e sonha deixar um legado”, disse a VEJA Ran Kuttner, da Universidade de Haifa, tendo ao fundo o som das sirenes que alertavam para um bombardeio nos arredores de sua sala.
Além de não poder mais contar com Hamas e Hezbollah, seus prepostos fora do país, o Irã sofreu um baque com a queda do governo aliado de Bashar al-Assad na Síria e com o distanciamento da Rússia, que tem sua própria guerra com que se preocupar. Também contribui para o inferno astral da teocracia islâmica o enorme descontentamento da população com o regime repressivo e misógino, além das agruras com a economia. Mesmo assim, ante a moderada fragilidade, o governo de Teerã não é inimigo a ser descartado: tem um arsenal de 3 000 mísseis balísticos de longo e médio alcance, sem paralelo no Oriente Médio, cada um com 300 a 700 quilos de explosivos, e, segundo especialistas, condições de prolongar o confronto por tempo indeterminado, antes de ser derrotado. A julgar pelos primeiros dias da ofensiva, Israel apresenta ampla superioridade militar e é pouco provável que se deixe enredar em uma guerra de desgaste.

REVOLUÇÃO — Aiatolás tomam o poder em 1979: abaixo os EUA
A situação já foi muito diferente — antes de serem inimigas juradas, as duas potências militares eram aliadas. Sob o reinado do xá Reza Pahlevi, o Irã foi um dos primeiros países a reconhecer Israel depois da fundação, em 1948. O Estado judaico representava, afinal, a chegada de mais um contrapeso aos países árabes na região, ainda por cima respaldado por seu grande aliado, os Estados Unidos. A parceria levou o governo israelense a treinar os trabalhadores agrícolas e as Forças Armadas iranianas em troca de petróleo. Tudo mudou em 1979, quando o aiatolá Ruhollah Khomeini chegou ao poder e instalou o regime baseado no islamismo xiita, rival dos sunitas que predominam na região. O novo governo imediatamente elegeu Washington, patrocinador do xá deposto, como o “Grande Satã” — 52 americanos foram mantidos reféns na embaixada em Teerã por mais de um ano — e Israel, seu parceiro, como o “Pequeno Satã”, prometendo varrer o país do mapa. Quase cinco décadas depois daquela ruptura, a diplomacia reflui enquanto mísseis seguem cortando o horizonte de Israel e Irã. E o resto do mundo prende ainda mais o fôlego, sobressaltado, com medo.
Publicado em VEJA de 20 de junho de 2025, edição nº 2949